Thursday, March 29, 2007

Flocos de neve

Vestido de branco, como sempre, ele avança metamorfoseando-se com a paisagem. Estende a língua para abraçar os flocos que voam e tenta sentir a individualidade deles se derretendo e misturando-se com sua vida. Imagina que consegue, mas no fundo sabe que não.

Levanta o dedo indicador e com delicadeza imagina estar tocando uma folha macia. A árvore rapidamente transforma-se em um corpo humano. Agora toca uma face macia.

Sacode a cabeça e segue em frente.

Seus pés afundam-se na neve pastosa, mas ele acha bom. Ouvindo atentamente, percebe que o vento lhe diz algo, mas prefere ignorar. A solidão lhe agrada por assegurar que está só.

Apesar de saber que solidão é relativo.

Apesar de saber que cada floco é alguém, que a pastosidade da neve é apenas uma sensação, e que a memória da árvore... é apenas uma memória.

Pierrot.

Wednesday, March 28, 2007

Gotas de água

Sentado à mesa, observa a pele morena em contraste à brancura do papel. Tensiona os músculos dos dedos, observando o desenho intricado das rugas que se refaz a cada movimento. Percebe que se olhar de um certo ângulo, sua mão esquerda tem gosto de melancia.

É de tarde. Anos antes estaria trabalhando nesse horário, mas agora já não precisa mais. Levanta-se e arrasta os chinelinhos cor de vinho até o banheiro, onde liga a água e espera a banheira encher. Despido, enfia só os dedinhos do pé direito, testando a temperatura.

Vapor sobe da água quente, embaçando os espelhos. Ele gosta disso.

Senta-se e relaxa os músculos, brincando de sentir a superfície da água na palma da mão. Não precisa mais dela para enrugar os dedos.

O sabão com cheiro de lavanda tem um toque suave. Já o xampu tem cheiro de dor-de-cotovelo.

Puxa a tampa do ralo, medindo com o dedo o nível da água a cada vez que ela baixa. Sozinho, observa seu corpo nu jogado ali na banheira. Agarra-se com força na beirada e tenta erguer-se. Cai sentado. Suspira fundo e tenta de novo. Agora, já em pânico, consegue juntar a pouca adrenalina do seu organismo já usado, e levanta-se com dificuldade.

Sua mulher nunca está em casa.

Quantas vezes mais será que ele consegue?

Pantaleão. Sempre sozinho, velho e rico.

Grãos de areia

Arlequim passa distraído, mordiscando pedaços de um coração e soltando suspiros de céu azul enquanto procura por sinais de civilização. Anda em círculos na areia fofa, fazendo com que suas pegadas se somem às da volta anterior.

Assim não se sente só.

Aos poucos as pegadas vão sumindo, tragadas por algum capricho de algum deus da areia, que quer que nosso heróis sinta-se totalmente só, totalmente desamparado. Talvez ele queira que Arlequim perca seu sorriso presunçoso, que sinta-se abandonado e preso na única força da natureza que não pode evitar. Ou talvez ele simplesmente colecione pegadas.

Lá não venta.

Os suspiros agora não são mais azuis, e levantam uma camada fina dos gãos de areia, aquela fumacinha que desenha espirais onde antes era liso. A areia em que senta agora não é mais aquela que pisou. O céu está mais longe.

Então ele entala.

Como é angustiante viver em uma ampulheta anil!

Arlequim.